Relatos de campo: estratégia unicórnio e os desafios da mudança
A melhor estratégia é a estratégia "casca grossa"
Quem fez o mundo?
Quem fez o cisne e o urso-negro?
Quem fez o gafanhoto?
Este gafanhoto, quero dizer
o que se lançou da grama,
o que agora come açúcar na minha mão,
o que move suas mandíbulas para frente e para trás em vez de para cima e para baixo
o que olha ao redor com seus enormes e complexos olhos.
Agora ergue seus pálidos antebraços e lava cuidadosamente a cara.
Agora estala as asas abertas e flutua para longe.
Não sei ao certo o que é uma oração.
Eu sei como ficar atenta, como cair
na grama, como me ajoelhar na grama,
como estar ociosa e abençoada, como passear pelos campos
que é o que tenho feito todos os dias.
Diga-me, o que mais eu deveria ter feito?
No fim, tudo não morre, e muito cedo?
Diga-me, o que você planeja fazer
Com sua única selvagem e preciosa vida?Mary Oliver, O dia de verão
Estratégia unicórnio
“Minha estratégia é atingir um valuation de $1B nos próximos 3 anos”.
Relato de um empreendedor cuja startup é uma fintech que captou sua Série B em 2021
Quem não deseja o status e a sensação de ter atingido aquilo que o título de unicórnio inspira? Não culpo o empreendedor, uma pessoa incrível, experiente e inspiradora. Entretanto, a ansiedade e a pressão para "chegar lá" o mais rápido possível resultaram na meta equivocada. Importante destacar que essa pressão está sendo mais imposta por ele mesmo do que pelos investidores. Ninguém é vítima aqui.
Atingir um valuation específico não deveria ser a estratégia de ninguém. No máximo, poderia ser uma das metas da empresa, desde que esteja casada com a criação real de valor. No mundo das startups, nem sempre a valuation está atrelada aquilo que fará a empresa ter fluxo de caixa crescente e previsível no futuro (como ocorre com empresas listadas na bolsa). Além disso, o preço é determinado pelo mercado e é influenciado por diversos fatores, alguns sob controle do empreendedor (exemplo: receita, margem, comportamento dos cohorts, crescimento), enquanto outros são macroeconômicos e variam conforme os ciclos econômicos. Portanto, seria ingênuo, no mínimo, anunciar para uma empresa com mais de 200 funcionários que a estratégia dos próximos 3 anos é se tornar um unicórnio. Estratégia não tem nada a ver com isso.
A verdadeira essência de uma estratégia bem-sucedida transcende a simples busca por um valuation impressionante. A estratégia deve ser guiada pela criação sustentável de valor e impacto duradouro. É essencial direcionar a energia para a construção de uma base sólida, fundamentada em inovação, excelência operacional e uma compreensão profunda das necessidades dos clientes e parceiros.
A estratégia que defendo é aquela que prioriza a qualidade e a relevância das soluções oferecidas. A capacidade de adaptação e evolução em um ambiente em constante mudança é crucial para o sucesso a longo prazo. Portanto, encorajo os empreendedores a desenvolverem um portfólio de produtos e serviços que se destaquem pela sua utilidade e que resolvam problemas reais dos usuários. Até chegar lá é preciso desenvolver thick skin, ou casca grossa, para ouvir muitos “nãos” e feedbacks negativos de clientes, fornecedores, funcionários e investidores.
Acredito que a verdadeira marca de uma startup bem-sucedida é a construção de relacionamentos sólidos e duradouros com os clientes, demonstrado através de cohorts de clientes que são leais no longo prazo. Isso requer a criação de uma reputação de confiança e de um comprometimento genuíno com a melhoria da vida das pessoas. Essa abordagem não apenas fortalece a base de clientes, mas também posiciona a startup de maneira única no mercado, alinhando o sucesso financeiro com um propósito mais amplo.
Em vez de perseguir cegamente o título de unicórnio (bastante atrelado a vaidade e representativo da bolha que ainda estamos vivendo), instigo os empreendedores a adotarem uma mentalidade de "centauro" - uma combinação equilibrada entre a busca por uma valuation sólida e o desenvolvimento contínuo de melhoria de produto, além de uma bela receita recorrente. Defendo uma estratégia que vai além dos números e que inspira o empreendedor a trilhar um caminho de crescimento orgânico, impacto significativo e realizações verdadeiramente valiosas para a sociedade e o mercado. Experimentar, errar, aprender e crescer. Isso inspira a equipe a se dedicar e a fazer acontecer.
As fases da mudança: um relato de campo
Já faz quase dois meses que partimos do Brasil, um mês desde que chegamos em Bali, e três semanas desde que as crianças começaram o ano escolar na Ilha dos Deuses. É interessante observar como Aisha, minha filha de 7 anos, está passando pelas fases da mudança e se adaptando rapidamente. Kai, de 5 anos, não demonstrou ser impactado negativamente; para ele, tudo é alegria, desde que tenha espaço para correr, atividades manuais para fazer e a natureza para explorar.
Cerca de 10 dias atrás, Aisha teve um revés, reclamando da falta de suas amigas e deixando claro que seu contexto anterior, estudando no Brasil, era muito melhor do que o atual. Depois de uma conversa em que compreendemos que ligar para algumas amigas e compartilhar as aventuras da nova vida seria uma boa maneira de se reconectar com o passado, as coisas pareceram melhorar. Um banho quente e uma boa noite de sono também ajudaram.
Na última sexta-feira, ao buscá-la na escola, ela falou espontaneamente sobre o quão feliz estava por estudar em uma escola que resgata animais de rua e proporciona tanto espaço para as crianças colocarem a mão na massa durante as aulas (literalmente, já que culinária e jardinagem são disciplinas curriculares). Será que ela já está no estágio 4 da Curva da Mudança, conforme mostrado na figura abaixo?
A Curva da Mudança é um modelo amplamente utilizado no mundo dos negócios e na gestão de mudanças, havendo muitas variações e adaptações. Frequentemente é atribuída à psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross, resultado de seu trabalho sobre a transição pessoal no luto e no lamento. Essa curva descreve os quatro estágios emocionais que as pessoas geralmente atravessam durante processos de mudança significativa. Essa teoria não apenas se aplica a indivíduos lidando com luto e perda, mas também é relevante para entender como as pessoas reagem e se adaptam a mudanças em ambientes profissionais. Vamos aos estágios:
1. Negação: No primeiro estágio da Curva da Mudança, vem a negação da realidade. Elas podem se recusar a acreditar que a mudança está ocorrendo ou minimizar sua importância. Isso ocorre porque a mudança muitas vezes desencadeia um senso de desconforto e incerteza, levando as pessoas a se agarrarem às suas zonas de conforto e à familiaridade do status quo.
2. Raiva ou Resistência: À medida que a negação cede espaço à compreensão da mudança, muitas pessoas experimentam sentimentos de raiva, frustração ou resistência. Elas podem se sentir injustiçadas pela necessidade da mudança ou podem temer as implicações que ela traz para suas vidas ou rotinas. Esse estágio é marcado por emoções intensas e, muitas vezes, comportamentos de oposição. Foi nesse momento que Aisha exclamou emocionalmente: “Minha escola do Brasil é muito melhor, e minhas amigas de lá são muito mais legais!”
3. Barganha ou Negociação: Conforme as pessoas começam a aceitar a realidade da mudança, frequentemente entram em um estágio de negociação. Isso envolve tentativas de encontrar maneiras de minimizar os impactos da mudança ou de negociar com as partes envolvidas para alcançar um compromisso. As pessoas podem buscar soluções intermediárias na esperança de preservar certos aspectos da situação anterior. Acredito que, em nosso caso, isso envolveu as videochamadas com as amigas brasileiras. Ela percebeu que as amigas ainda estavam lá e que suas experiências aqui foram valorizadas por elas. É bom se abrir e compartilhar o que estamos vivendo com as pessoas queridas.
4. Aceitação e Adaptação: No último estágio da Curva da Mudança, as pessoas finalmente chegam à aceitação da nova realidade. Elas começam a ver os aspectos positivos da mudança e a reconhecer as oportunidades que ela pode trazer. Nesse ponto, as pessoas se adaptam às novas circunstâncias e encontram maneiras de prosperar nesse novo ambiente. Dá pra afirmar que ela já chegou aqui por estar feliz e presente com o novo que já não é mais tão novo assim?
Kai e Aisha explorando o Goa Garba, um templo datado do século 12 que é um lugar sagrado para os hindus. Goa Garba fica nos arredores da nossa estadia atual, e estava absolutamente vazio quando fomos, um baita privilégio.
Longe de mim ser professoral aqui, num assunto que estou longe de ser um acadêmico especialista. Mas mudança faz parte da vida de todos nós, o tempo todo. Faz parte da experiência que estamos vivendo em família, faz parte da vida pessoal e profissional de todos nós, e é a realidade onipresente da vida empreendedora.
Exposição a mudanças e à rejeição cria casca grossa. Com a prática, aprendemos a navegar mudanças com mais protagonismo e menos ansiedade.
Obrigado por me acompanhar e let's hike!
Alex